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CAPITULO XIX
A bordo
Eramos onze passageiros, um homem doudo, acompanhado pela mulher, dous rapazes que iam a passeio, quatro commerciantes e dous criados. Meu pae recommendou-me a todos, começando pelo capitão do navio, que aliás tinha muito que cuidar de si, porque, além do mais, levava a mulher tisica em ultimo gráu.
Não sei se o capitão suspeitou alguma cousa do meu funebre projecto, ou se meu pae o poz de sobreaviso; sei que não me tirava os olhos de cima; chamava-me para toda a parte. Quando não podia estar commigo, levava-me para a mulher. A mulher ia quasi sempre n'uma camilha raza, a tossir muito, e a afiançar que me havia de mostrar os arredores de Lisboa. Não estava magra, estava transparente; era impossivel que não morresse de uma hora para outra. O capitão fingia não crer na morte proxima, talvez por enganar-se a si mesmo. Eu não sabia nem pensava nada. Que me importava a mim o destino de uma mulher tisica, no meio do oceano? O mundo para mim era Marcella.
Uma noite, logo no fim do uma semana, achei ensejo propicio para morrer. Subi cauteloso, mas encontrei o capitão, que junto á amurada, tinha os olhos fitos no horizonte.
–Algum temporal? disse eu.
–Não, respondeu elle estremecendo; não; admiro o explendor da noite. Veja; está celestial!
O estylo desmentia da pessoa, assaz rude e apparentemente alheia a locuções rebuscadas. Fitei-o; elle pareceu saborear o meu espanto. No fim de alguns segundos, pegou-me na mão e apontou para a lua, perguntando-me porque não fazia uma ode á noite; respondi-lhe que não era poeta. O capitão rosnou alguma cousa, deu dous passos, metteu a mão no bolso, saccou um pedaço de papel, muito amarrotado; depois, á luz de uma lanterna, leu uma ode horaciana sobre a liberdade da vida maritima. Eram versos delle.
–Que tal?
Não me lembra o que lhe disse; lembra-me que elle me apertou a mão com muita força e muitos agradecimentos; logo depois recitou-me dous sonetos; ia recitar-me outro, quando o vieram chamar da parte da mulher.—Lá vou, disse elle; e recitou-me o terceiro soneto, com pausa, com amor.
Fiquei só; mas a musa do capitão varrera-me do espirito os pensamentos máus; preferi dormir, que é modo interino de morrer. No dia seguinte, acordamos debaixo de um temporal, que metteu medo a toda a gente, menos ao doudo; esse entrou a dar pulos, a dizer que a filha o mandava buscar, n'uma berlinda; a morte de uma filha fôra a causa da loucura. Não, nunca me ha de esquecer a figura hedionda do pobre homem, no meio do tumulto das gentes e dos uivos do furacão, a cantarolar e a bailar, com os olhos a saltarem-lhe da cara, pallido, a coma hirsuta, descomposta. Ás vezes parava, erguia ao ar as mãos ossudas, fazia umas cruzes com os dedos, depois um xadrez, depois umas argolas, e ria muito, desesperadamente. A mulher não podia já cuidar delle; entregue ao terror da morte, rezava por si mesma a todos os santos do céu. Emfim, a tempestade amainou depois de longas horas; e confesso que foi uma diversão excellente á tempestade do meu coração. Eu, que meditava ir ter com a morte, não ousei fital-a quando ella veiu ter commigo.
Amainou o temporal, o capitão veiu perguntar-me se tivera medo, se estivera em risco, se não achára sublime o expectaculo; tudo isso com um interesse de amigo. Naturalmente a conversa versou sobre a vida do mar; o capitão perguntou-me se não gostava de idyllios piscatorios; eu respondi-lhe ingenuamente que não sabia o que era.
–Vae ver, respondeu elle.
E recitou-me um poemasinho, depois outro,—uma egloga,—e emfim cinco sonetos, com os quaes rematou nesse dia a confidencia litteraria. No dia seguinte, antes de me recitar nada, explicou-me o capitão que só por motivos graves abraçara a profissão maritima, porque a avó queria que elle fosse padre, e com effeito possuia algumas lettras latinas; não chegou a ser padre, mas não deixou de ser poeta, que era a sua vocação natural; e em prova de que tal era a sua vocação, recitou-me logo, de corpo presente, uma centena de versos. Notei um phenomeno: os ademanes que elle usava eram taes, que uma vez me fizeram rir; mas o capitão, quando recitava, de tal sorte olhava para dentro de si mesmo, que não viu nem ouviu nada.
Os dias passavam, e as aguas, e os versos, e com elles ia tambem passando a vida da mulher. Estava por pouco. Um dia, logo depois do almoço, disse-me o capitão que a enferma talvez não chegasse ao fim da semana.
–Já! exclamei.
–Passou muito mal a noite.
Fui vel-a; achei-a, na verdade, quasi moribunda, mas fallando ainda de descançar em Lisboa alguns dias, antes de ir commigo a Coimbra, porque era seu proposito levar-me á Universidade. Deixei-a consternado; fui achar o marido a olhar para as vagas, que vinham morrer na costado do navio, e tratei de o consolar; elle agradeceu-me, relatou-me a historia dos seus amores, elogiou a fidelidade e a dedicação da mulher, relembrou os versos que lhe fez, e recitou-m'os. Neste ponto vieram buscal-o da parte della; corremos ambos; era uma crise. Esse e o dia seguinte foram crueis; o terceiro foi o da morte; eu fugi ao expectaculo, tinha-lhe repugnancia. Meia hora depois encontrei o capitão, sentado n'um mólho de cabos, com a cabeça nas mãos; disse-lhe alguma cousa de conforto.
–Morreu como uma santa, respondeu elle; e, para que estas palavras não pudessem ser levadas á conta de fraqueza, ergueu-se logo, sacudiu a cabeça, e fitou o horizonte, com um gesto longo e profundo.—Vamos, continuou, entreguemol-a á cova que nunca mais se abre.
Effectivamente, poucas horas depois, era o cadaver lançado ao mar, com as ceremonias do costume. A tristeza murchára todos os rostos; o do viuvo trazia a expressão de um cabeço rijamente lascado pelo raio. Grande silencio. A vaga abriu o ventre, acolheu o despojo, fechou-se,—uma leve ruga,—e a galera foi andando. Eu deixei-me estar alguns minutos, á popa, com os olhos naquelle ponto incerto do mar em que ficava um de nós… Fui dalli ter com o capitão, para distrahil-o.
–Obrigado, disse-me elle comprehendendo a intenção; creia que nunca me esquecerei dos seus bons serviços. Deus é que lh'os ha de pagar. Pobre Leocadia! tu te lembrarás de nós no céu.
Enxugou com a manga uma lagrima importuna; eu busquei um derivativo na poesia, que era a paixão delle. Fallei-lhe dos versos, que me lera, e offereci-me para imprimil-os. Os olhos do capitão animaram-se um pouco.—Talvez aceite, disse elle; mas não sei… são bem frouxos versos. Jurei-lhe que não; pedi que os reunisse e me désse antes do desembarque.
–Pobre Leocadia! murmurou elle sem responder ao pedido. Um cadaver… o mar… o céu… o navio…
No dia seguinte veiu ler-me um epicedio composto de fresco, em que estavam memoradas as circumstancias da morte e da sepultura da mulher; leu-m'o com a voz commovida devéras, e a mão tremula; no fim perguntou-me se os versos eram dignos do thesouro que perdera.
–São, disse eu.
–Não haverá estro, ponderou elle, no fim de um instante, mas ninguem me negará sentimento, se não é que o proprio sentimento prejudicou a perfeição....
–Não me parece; acho os versos perfeitos.
–Sim, eu creio que… Versos de marujo.
–De marujo poeta.
Elle levantou os hombros, olhou para o papel, e tornou a recitar a composição, mas já então sem tremuras, accentuando as intenções litterarias, dando relevo ás imagens e melodia aos versos. No fim, confessou-me que era a sua obra mais acabada, eu disse-lhe que sim; elle apertou-me muito a mão e predisse-me um grande futuro.
CAPITULO XX
Bacharelo-me
Um grande futuro! Em quanto esta palavra me batia no ouvido, devolvia eu os olhos, ao longe, no horizonte mysterioso e vago. Uma idéa expellia outra, a ambição desmontava Marcella. Um grande futuro? Talvez naturalista, litterato, archeologo, banqueiro, politico, ou até bispo,—bispo que fosse,—uma vez que fosse um cargo, uma preeminencia, uma grande reputação, uma posição superior. A ambição, dado que fosse aguia, quebrou nessa occasião o ovo, e desvendou a pupilla fulva e penetrante. Adeus, amores; adeus, Marcella; dias de delirio, joias sem preço, vida sem regimen, adeus. Cá me vou ás fadigas e á gloria; deixo-vos com as calcinhas da primeira edade.
E foi assim que desembarquei em Lisboa e segui para Coimbra. A Universidade esperava-me com as suas materias arduas, e não sei se profundas; estudei-as muito mediocremente, e nem por isso perdi o gráu de bacharel; deram-m'o com a solemnidade do estylo, após os annos da lei; uma bella festa que me encheu de orgulho e de saudades,—principalmente de saudades. Tinha eu conquistado em Coimbra uma grande nomeada de folião; era um academico estroina, superficial, tumultuario e petulante, dado ás aventuras, fazendo romantismo pratico e liberalismo theorico, vivendo na pura fé dos olhos pretos e das constituições escriptas. No dia em que a Universidade me attestou, em pergaminho, uma sciencia que eu estava longe de trazer arraigada no cerebro, confesso que me achei de de algum modo logrado, ainda que orgulhoso. Explico-me: o diploma era uma carta de alforria; se me dava a liberdade, dava-me a responsabilidade. Guardei-o, deixei as margens do Mondego, e vim por alli fóra assaz desconsolado, mas sentindo já uns impetos, uma curiosidade, um desejo de acotovellar os outros, de influir, de gozar, de viver,—de prolongar a Universidade pela vida adeante…
CAPITULO XXI
O almocreve
Vae então, empacou o jumento em que eu vinha montado; fustiguei-o, elle deu dous corcovos, depois mais tres, emfim mais um, que me sacudiu fóra da sella, e com tal desastre, que o pé esquerdo me ficou preso no estribo; tento agarrar-me ao ventre do animal, mas já então, espantado, disparou pela estrada fóra. Digo mal: tentou disparar, e effectivamente deu dous saltos, mas um almocreve, que alli estava, acudiu atempo de lhe pegar na redea e detel-o, não sem esforço nem perigo. Dominado o bruto, desvencilhei-me do estribo e puz-me de pé.
–Olhe do que vosmecê escapou, disse o almocreve.
E era verdade; se o jumento corre por alli fóra, contundia-me devéras, e não sei se a morte não estaria no fim do desastre; cabeça partida, uma congestão, qualquer transtorno cá dentro; e lá se me ia a bacharelice em flor. O almocreve salvara-me talvez a vida; era positivo; eu sentia-o no sangue que me agitava o coração. Bom almocreve! emquanto eu tornava á consciencia de mim mesmo, elle cuidava de concertar os arreios do jumento, com muito zelo e arte. Resolvi dar-lho tres moedas de ouro das cinco que trazia commigo; não porque tal fosse o preço da minha vida,—essa era inestimavel; mas por que era uma recompensa digna da dedicação com que elle me salvou. Está dito, dou-lhe as tres moedas.
–Prompto, disse elle apresentando-me a redea da cavalgadura.
–Daqui a nada, respondi; deixa-me, que ainda não estou em mim…
–Ora qual!
–Pois não é certo que ia morrendo?
–Se o jumento corre por ahi fóra, é possivel; mas, com a ajuda do Senhor, viu vosmecê que não aconteceu nada.
Fui aos alforges, tirei um collete velho, em cujo bolso trazia as cinco moedas de ouro, e durante esse tempo cogitei se não era excessiva a gratificação, se não bastavam duas moedas. Talvez uma. Com effeito, uma moeda era bastante para lhe dar estremeções de alegria. Examinei-lhe a roupa; era um pobre diabo, que nunca jamais vira uma moeda de ouro. Portanto, uma moeda. Tirei-a, vi-a reluzir á luz do sol; não a viu o almocreve, por que eu tinha-lhe voltado as costas; mas suspeitou-o talvez, entrou a fallar ao jumento de um modo significativo; dava-lhe conselhos, dizia-lhe que tomasse juizo, que o «senhor doutor» podia castigal-o; um monologo paternal. Valha-me Deus! até ouvi estalar um beijo: era o almocreve que lhe beijava a testa.
–Olé! exclamei.
–Queira vosmecê perdoar, mas o diabo do bicho está a olhar para a gente com tanta graça…
Ri-me, hesitei, metti-lhe na mão um cruzado em prata, cavalguei o jumento, e segui a trote largo, um pouco vexado, melhor direi um pouco incerto do effeito da pratinha. Mas a algumas braças de distancia, olhei para traz, o almocreve fazia-me grandes cortezias, com evidentes mostras de contentamento. Adverti que devia ser assim mesmo; eu pagara-lhe bem, pagara-lhe talvez de mais. Metti os dedos no bolso do collete que trazia no corpo e senti umas moedas de cobre; eram os vintens que eu devera ter dado ao almocreve, em logar do cruzado em prata. Porque, emfim, elle não levou em mira nenhuma recompensa ou virtude, cedeu a um impulso natural, ao temperamento, aos habitos do officio; accresce que a circumstancia de estar, não mais adeante nem mais atraz, mas justamente no ponto do desastre, parecia constituil-o simples instrumento de Providencia; e de um ou de outro modo, o merito do acto era positivamente nenhum. Fiquei desconsolado com esta reflexão, chamei-me prodigo, lancei o cruzado á conta das minhas dissipações antigas; tive (porque não direi tudo?) tive remorsos.
CAPITULO XXII
Volta ao Rio
Jumento de uma figa, cortaste-me o fio ás reflexões. Já agora não digo o que pensei dalli até Lisboa, nem o que fiz em Lisboa, na peninsula e em outros logares da Europa, da velha Europa, que nesse tempo parecia remoçar. Não, não direi que assisti ás alvoradas do romantismo, que tambem eu fui fazer poesia effectiva no regaço da Italia; não direi cousa nenhuma. Teria de escrever um diario de viagem e não umas memorias, como estas são, nas quaes só entra a substancia da vida.
Ao cabo de alguns annos de peregrinação attendi ás supplicas de meu pae:—«Vem, dizia elle na ultima carta; se não vieres depressa, acharás tua mãe morta!» Esta ultima palavra foi para mim um golpe. Eu amava minha mãe; tinha ainda deante dos olhos as circumstancias da ultima benção que ella me dera, a bordo do navio. «Meu triste filho, nunca mais te verei», soluçava a pobre senhora apertando-me ao peito. E essas palavras resoavam-me agora, como uma prophecia realizada.
Note-se que eu estava em Veneza, ainda rescendente aos versos de lord Byron; lá estava, mergulhado em pleno sonho, revivendo o preterito, crendo-me na Serenissima Republica. É verdade; uma vez aconteceu-me perguntar ao locandeiro se o doge ia a passeio nesse dia.—Que doge, signor mio? Cahi em mim, mas não confessei a illusão; disse-lhe que a minha pergunta era um genero de charada americana; elle mostrou comprehender, e accrescentou que gostava muito das charadas americanas. Era um locandeiro. Pois deixei tudo isso, o locandeiro, o doge, a ponte dos Suspiros, a gondola, os versos do lord, as damas do Rialto, deixei tudo, e disparei como uma bala na direcção do Rio de Janeiro.
Vim… Mas não; não alonguemos este capitulo. Ás vezes, esqueço-me a escrever, e a penna vae comendo papel, com grave prejuizo meu, que sou autor. Capitulos compridos quadram melhor a leitores pesadões; e nós não somos um publico in-folio, mas in-12, pouco texto, larga margem, typo elegante, córte dourado e vinhetas… principalmente vinhetas… Não, não alonguemos o capitulo.
CAPITULO XXIII
Triste, mas curto
Vim; e não nego que, ao avistar a cidade natal, tive uma sensação nova. Não era effeito da minha patria politica; era-o do logar da infancia, a rua, a torre, o chafariz da esquina, a mulher de mantilha, o preto do ganho, as cousas e scenas da meninice, buriladas na memoria. Nada menos que uma renascença. O espirito, como um passaro, não se lhe deu da corrente dos annos, arrepiou o vôo na direcção da fonte original, e foi beber da agua fresca e pura, ainda não mesclada do enxurro da vida.
Reparando bem, ha ahi um logar-commum. Outro logar-commum, tristemente commum, foi a consternação da familia. Meu pae abraçou-me com lagrimas.—Tua mãe não póde viver, disse-me elle. Com effeito, não era já o rheumatismo que a matava, era um cancro no estomago. A infeliz padecia de um modo crú, porque o cancro é indifferente ás virtudes do sujeito; quando róe, róe; roer é o seu officio. Minha irmã Sabina, já então casada com o Cotrim, andava a cair de fadiga. Pobre moça! dormia tres horas por noite, nada mais. O proprio tio João estava abatido e triste. D. Eusebia e algumas outras senhoras lá estavam tambem, não menos tristes e não menos dedicadas.
–Meu filho!
A dor suspendeu por um pouco as tenazes; um sorriso allumiou o rosto da enferma, sobre o qual a morte batia a aza eterna. Era menos um rosto do que uma caveira; a belleza passára, como um dia brilhante; restavam os ossos, que não emmagrecem nunca. Mal poderia conhecel-a; havia oito ou nove annos que nos não viamos. Ajoelhado, ao pé da cama, com as mãos della entre as minhas, fiquei mudo e quieto, sem ousar fallar, porque cada palavra seria um soluço, e nós temiamos avisal-a do fim. Vão temor! Ella sabia que estava prestes a acabar; disse-m'o; verificamol-o na seguinte manhã.
Longa foi a agonia, longa e cruel, de uma crueldade minuciosa, fria, repisada, que me encheu de dor e estupefacção. Era a primeira vez que eu via morrer alguem. Conhecia a morte de outiva; quando muito, tinha-a visto já petrificada no rosto de algum cadaver, que acompanhei ao cemiterio, ou trazia-lhe a idéa embrulhada nas amplificações de rhetorica dos professores de cousas antigas,—a morte aleivosa de Cesar, a austera de Socrates, a orgulhosa de Catão. Mas esse duello do ser e do não ser, a morte em acção, dolorida, contrahida, convulsa, sem apparelho politico ou philosophico, a morte de uma pessoa amada, essa foi a primeira vez que a pude encarar. Não chorei; lembra-me que não chorei durante o expectaculo; tinha os olhos estupidos, a garganta presa, a consciencia boquiaberta. Que? uma creatura tão docil, tão meiga, tão santa, que nunca jamais fizera verter uma lagrima de desgosto, mãe carinhosa, esposa immaculada, era força que morresse assim, trateada, mordida pelo dente tenaz de uma doença sem misericordia? Confesso que tudo aquillo me pareceu obscuro, incongruente, insano…
Triste capitulo; passemos a outro mais alegre.
CAPITULO XXIV
Curto, mas alegre
Fiquei prostrado. E comtudo era eu, nesse tempo, um fiel compendio de trivialidade e presumpção. Jamais o problema da vida e da morte me opprimira o cerebro; nunca até esse dia me debruçara sobre o abysmo do Inexplicavel; faltava-me o essencial, que é o estimulo, a vertigem…
Para lhes dizer a verdade toda, eu reflectia as opiniões de um cabelleireiro, que achei em Modena, o qual se distinguia por não as ter absolutamente. Era a flor dois cabelleireiros; por mais demorada que fosse a operação do toucado, não enfadava nunca; elle intercalava as penteadelas com muitos motes e pulhas, cheios de um pico, de um sabor… E não tinha outra philosophia. Nem eu. Não digo que a Universidade me não tivesse ensinado alguma; mas eu decorei-lhe só as formulas, o vocabulario, o esqueleto. Tratei-a, como tratei o latim: embolsei tres versos de Virgilio, dous de Horacio, uma duzia de locuções moraes e politicas, para as despezas da conversação. Tratei-os como tratei a historia e a jurisprudencia. Colhi de todas as cousas a phraseologia, a casca, a ornamentação, que eram para o meu espirito, vaidoso e nu, o mesmo que, para o peito do selvagem, são as conchas do mar e os dentes de pessoa morta.
Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz á consciencia; e o melhor da obrigação é quando, á força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hypocrisia, que é um vicio hediondo. Mas, na morte, que differença! que desabafo! que liberdade! Como a gente póde sacudir fóra a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desaffeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em summa, já não ha visinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem extranhos; não ha platéa. O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o territorio da morte; não digo que elle se não estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá do exame nem do julgamento. Senhores vivos, não ha nada tão incommensuravel como o desdem dos finados.
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